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Comissão em Pauta
1. A Covid -19
Segundo o Ministério da Saúde, a COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves. O novo agente do coronavírus foi descoberto em 31/12/19 após casos registrados na China[1].
No Brasil, até as 14h de 29/04/2020, dos 78.162 casos confirmados, 34.132 estão recuperados (44%) e 38.564 estão em acompanhamento, tendo sido registradas 5.466 mortes[2].
2. Leis e decretos federais que reconhecem a calamidade
Diante da gravidade da doença e de seus incontestáveis reflexos na sociedade,
foram editados diversos atos normativos.
A Portaria no 188, de 3 de fevereiro de 2020, proveniente do Gabinete do Ministro da Saúde, declarou Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV).
Por seu turno, a Lei no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Nos termos do art. 8º, esta lei vigorará enquanto perdurar o estado de emergência de saúde internacional.
Finalmente, o Decreto Legislativo no 6, de 2020, reconheceu, para os fins do art. 65 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020.
3. Impactos em nas relações de consumo
Em nota técnica datada de 24 de março de 2020, o diretor executivo do Procon-SP, Fernando Capez, ressaltou os impactos generalizados da pandemia nas relações de consumo. Trata-se de uma situação extraordinária de calamidade pública reconhecida pelo Governo Federal e pelos governos estadual e municipal de São Paulo, consistindo em um superveniente evento de força maior em escala monumental.
A situação, anômala e inédita, não permite sequer que se atribua nexo de causalidade às partes contratantes, já que nenhuma delas deu causa ao fenômeno irresistível e inevitável que se espalha em proporções assustadoras[3].
4. O regime da energia elétrica na era pré-pandemia: o Código de Defesa do Consumidor e a Lei no 12.212/2010 (tarifa social)
O serviço de fornecimento de energia elétrica, além de público, é essencial, submetendo-se às regras protetivas do Código de Defesa do Consumidor.
Nas palavras da doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro[4], o serviço público é "toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público". Mediante análise do artigo 21, inciso XII, alínea b, artigo 175, CF, e artigo 14, caput, da Lei no 9.427/96, torna-se possível classificar o fornecimento de energia elétrica pelas concessionárias distribuidoras desse serviço como sendo serviço público.
Ademais, preceitua o artigo 3°, § 2°, do CDC, que "serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista". Por seu turno, o artigo 22 dispõe que "os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos".
Quanto às concessionárias, que são as prestadoras do fornecimento de energia elétrica, essas aderem também às normas do Código de Defesa do Consumidor Segundo o art. 140 da resolução 414/2010 da ANEEL, "a distribuidora é responsável, além das obrigações que precedem o início do fornecimento, pela prestação de serviço adequado a todos os seus consumidores, assim como pelas informações necessárias à defesa de interesses individuais, coletivos ou difusos".
Conforme preleciona Rizzato Nunes[5], os serviços essenciais são assim definidos:
"Em medida amplíssima todo serviço público, exatamente pelo fato de sê-lo (público), somente pode ser essencial. Não poderia a sociedade funcionar sem um mínimo de segurança pública, sem a existência dos serviços do Poder Judiciário, sem algum serviço público etc. Nesse sentido então é que se diz que todo serviço público é essencial. Assim, também o são os serviços de fornecimentos de energia elétrica, de água e esgoto, de coleta de lixo, de telefonia etc".
Por oportuno, impende ressaltar que o art. 3o, inciso X, do Decreto Federal nº 10.282/2020 expressamente incluiu toda a cadeia do setor elétrico (geração, transmissão e distribuição) no rol de serviços essenciais.
Cumpre salientar que, a fim de beneficiar os consumidores de energia elétrica que se enquadrem em situação de vulnerabilidade social, foi criada a figura da Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE). Regulamentada pela Lei no 12.212/2010 e pelo Decreto nº 7.583/2011, consiste em um desconto concedido nas faturas de energia elétrica para as famílias pertencentes à subclasse de baixa renda, desde que atendam ao menos uma das condições elencadas no artigo 2o, inciso I, II e §1o da Lei 12.212/2010:
I - seus moradores deverão pertencer a uma família inscrita no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal - CadÚnico, com renda familiar mensal per capita menor ou igual a meio salário mínimo nacional; ou
II - tenham entre seus moradores quem receba o benefício de prestação continuada da assistência social, nos termos dos arts. 20 e 21 da Lei n o 8.742, de 7 de dezembro de 1992, inciso I, II e §1º.
§1º. Excepcionalmente, será também beneficiada com a Tarifa Social de Energia Elétrica a unidade consumidora habitada por família inscrita no CadÚnico e com renda mensal de até 3 (três) salários mínimos, que tenha entre seus membros portador de doença ou patologia cujo tratamento ou procedimento médico pertinente requeira o uso continuado de aparelhos, equipamentos ou instrumentos que, para o seu funcionamento, demandem consumo de energia elétrica, nos termos do regulamento.
Tal lei foi alterada pela MP 950, nos seguintes termos:
Art. 2º. A Lei no 12.212, de 20 de janeiro de 2010, passa a vigorar com as seguintes alterações:
"Art. 1o-A. No período de 1o de abril a 30 de junho de 2020, os descontos de que tratam os incisos I ao IV do caput do art. 1o serão aplicados conforme indicado a seguir:
I - para a parcela do consumo de energia elétrica inferior ou igual a 220 (duzentos e vinte) kWh/mês, o desconto será de 100% (cem por cento); e
II - para a parcela do consumo de energia elétrica superior a 220 (duzentos e vinte) kWh/mês, não haverá desconto." (NR)
5. As MPs 949 e 950
Diante da instalação da pandemia da Covid-19, foram editadas duas Medidas Provisórias acerca do fornecimento de serviço de energia elétrica, ambas datadas de 8 de abril de 2020.
A Medida Provisória no 950, segundo se depreende de seu art. 1º, dispõe sobre medidas temporárias emergenciais destinadas ao setor elétrico para enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente da pandemia de coronavírus (covid-19).
Para custear a MP 950, foi criada a Medida Provisória 949, que abre Crédito Extraordinário no valor de R$ 900.000.000,00 (novecentos milhões de reais) para Transferência de Recursos para a Conta de Desenvolvimento Energético.
A MP 950 determinou desconto nas tarifas de 100% para a parcela do consumo de energia elétrica de até 220 kWh/mês para os beneficiários da tarifa social. A norma também autorizou que a União repasse recursos para cobertura desses descontos em virtude da pandemia do coronavírus (Covid-19).
Em paralelo, a MP 949 acresceu ao orçamento da ANEEL crédito extraordinário de R$ 900 milhões e determinou que a Agência fizesse o aporte desse recurso na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) para subsidiar os descontos autorizados. Em tratativas com a CCEE, gestora da Conta CDE, a Agência dividiu o repasse em três parcelas mensais: R$ 400 milhões em abril, R$ 250 milhões em maio e R$ 250 milhões em junho[6]
5.1 Justificativa da MP 950: defesa do consumidor x equilíbrio econômico
Em decorrência da pandemia, que gerou uma situação absolutamente imprevisível e inevitável tanto para consumidores quanto para fornecedores, a MP 950 foi editada para tentar solucionar as duas questões urgentes: a perda da capacidade de pagamento dos consumidores de baixa renda, beneficiários da tarifa social, e a perda da capacidade financeira das distribuidoras de energia elétrica, com o aumento da inadimplência e a redução do consumo de energia.
Assim sendo, o que se busca é, além de trazer benefício aos consumidores mais vulneráveis, tratar o urgente problema enfrentado pelo setor, que é a dificuldade de caixa das distribuidoras de energia elétrica.
Por conseguinte, segundo informa o Ministério das Minas e Energias, o Governo Federal espera possibilitar que as distribuidoras continuem honrando seus compromissos com os demais agentes, preservando a sustentabilidade do setor elétrico. A expectativa da pasta é amenizar a pressão tarifária sobre os consumidores em 2020, decorrente de custos extraordinários inseridos no contexto da pandemia do COVID-19[7].
5.2 Regras da MP 950
Em linhas gerais, segundo esclarece a Aneel[8], a MP no 950/2020 funcionará da seguinte maneira:
a) Prevê desconto de 100% nas tarifas de consumo de energia elétrica de até 220
quilowatts/hora por mês (kWh/mês) para os beneficiários da tarifa social (Lei
12.212/2010), por três meses, até 30/06/2020.
b) Todas as faturas emitidas de 01/04 a 30/06/2020 são abrangidas pela MP; ou seja, devem ser emitidas considerando os novos descontos, independentemente do período do consumo.
c) O novo desconto já deve ser aplicado antes da regulamentação da Aneel, tendo
em vista que a MP produz efeitos imediatos.
d) Indígenas e quilombolas que já tem 100% de desconto até 50kWh passam a ter
100% de desconto até 220 kWh.
e) A Aneel não regulamenta a aplicação de tributos, a exemplo do ICMS, PIS/COFINS e da COSIP. Assim, deve ser mantida a aplicação tributária conforme previsto na legislação correlata, ainda que seja necessária a emissão da fatura apenas com a cobrança dos tributos. De toda a forma, deve-se atentar ao fato de que a tarifa até 220 kWh nesse período será de R$ 0,00/MWh, o que eventualmente pode causar algum impacto no próprio cálculo dos tributos.
f) A distribuidora deverá colocar mensagem em destaque em sua página na internet
e demais canais de comunicação, esclarecendo sobre o período de aplicação, o novo desconto e, se necessário, questões relacionadas à aplicação dos tributos. Caso possível, deverá ser incluída mensagem na fatura de energia sobre a MP no 950/2020.
6. Críticas à MP 950
Conforme se viu, poderão se valer dos benefícios da MP 950 (desconto de 100% até 30/06/2020) os consumidores que fizerem jus à tarifa social e que não ultrapassarem o consumo de 220kWh/mês. Até então, estes consumidores tinham desconto de até 65% para contas de até 220 quilowatts.
Em linhas gerais, consoante se depreende da Lei 12.212./2010, para ter direito à tarifa social o consumidor de baixa renda deve: a) estar cadastrado no CadÚnico do Governo Federal, possuindo renda familiar igual ou inferior a meio salário mínimo per capta; ou b) ter, entre os moradores de sua família, quem receba o benefício de prestação continuada da assistência social; ou c) excepcionalmente, pertencer a família inscrita no CadÚnico e com renda mensal de até 3 (três) salários mínimos, que tenha entre seus membros portador de doença ou patologia cujo tratamento ou procedimento médico pertinente requeira o uso continuado de aparelhos, equipamentos ou instrumentos que, para o seu funcionamento, demandem consumo de energia elétrica, nos termos do regulamento.
Todavia, deputados veem problemas no uso do Cadastro Único do governo federal (CadÚnico) para conceder tarifa zero de conta de luz para famílias de baixa renda durante a pandemia. Recentemente, a Câmara aprovou projeto (PL 1106/20) que busca incluir consumidores que já estão no Cadastro Único de maneira automática nos benefícios da tarifa social.
Ainda assim, alguns parlamentares pontuam que o CadÚnico, não contém todas as famílias que deveria. O deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), presidente da Comissão de Minas e Energia em 2019, afirma que o seu Estado tem menos de 100 mil famílias no cadastro e que pelo menos outras 500 mil deveriam ter direito. Ele propõe conceder o benefício para todos que têm contas de até 220 quilowatt[9].
Críticas também são apresentadas pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Apesar de avaliar como importante a Medida Provisória 950/2020, considera, no entanto, que alguns pontos precisam ser aprimorados. É o caso da previsão do repasse dos custos da ajuda social totalmente para os consumidores e o auxílio para as distribuidoras.
Segundo a entidade, é imprescindível que a conta seja repartida entre todos os agentes da cadeia produtiva do setor elétrico, sob o risco de sobrecarga na conta de luz estimada em 20% nas tarifas para os próximos anos. Com efeito, MP 950 transferiria novos custos aos consumidores, por meio de encargos cobrados na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE)[10]. Ademais, as medidas temporárias, criadas para fazer frente à crise causada pela pandemia da covid-19, não devem se converter em encargos e taxas permanentes sobre a conta de luz[11].
7. Notas sobre a proibição de interrupção de serviço de energia elétrica
A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível sua abrupta interrupção.
Neste sentido:
O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza. 8. Recurso improvido". (1ª turma Min. José Delgado. ROMS 8915/MA. DJ 17.08.98. Unânime).
A ocorrência da pandemia da Covid-19 torna ainda mais necessária a observância do princípio da continuidade da prestação do serviço público essencial.
Assim, a interrupção do serviço de energia em razão de falta de pagamento, neste delicado momento, fica vedada, consoante se depreende da Resolução no 878/2020 da Aneel. Com efeito, a Agência suspendeu por 90 dias os cortes no fornecimento de energia elétrica motivados por falta de pagamento dos consumidores residenciais urbanos e rurais e também de atividades essenciais no enfrentamento da pandemia do coronavírus. A medida é válida a partir de 25/03/2020[12].
Na mesma esteira, a ANEEL suspendeu por 90 dias aplicação de três reajustes de tarifas aprovados em 07/04/2020 pela agência e que, pelo cronograma normal, entrariam em vigor no dia seguinte. Os reajustes aprovados, mas com aplicação postergada, são os das distribuidoras CPFL Paulista, Energisa Mato Grosso do Sul e Energisa Mato Grosso. Segundo informa o órgão governamental, o diferimento foi solicitado pelas próprias concessionárias, que continuarão cobrando as atuais tarifas até 30 de junho de 2020[13].
8. Conclusão
Em vista do exposto, constata-se que o estado de calamidade pública instaurada pela pandemia da Covid-19 abalou profundamente o campo das relações de consumo, inclusive as concernentes ao serviço de fornecimento de energia elétrica.
A circunstância se torna ainda mais delicada pelo fato de se tratar de um serviço público essencial, notabilizado pela continuidade. De outra ponta, estamos diante da inédita situação de não ser possível vincular eventual prejuízo imposto ao consumidor a uma atuação do fornecedor - que está também prejudicado pelo evento de proporções internacionais.
Para tentar compatibilizar os interesses dos dois polos na relação jurídica de consumo, o Governo Federal editou a MP 950, resguardando os interesses dos mais vulneráveis neste cenário: os consumidores beneficiários da tarifa social, que terão desconto de 100% em suas contas de energia elétrica até 30/06/2020, desde que não ultrapassem o consumo de 220Kw/mês. Destinou, assim, 900 milhões de reais para cobrir tais despesas. As fornecedoras de energia elétrica, por seu turno, se valem da MP 950 para atenuar a perda de sua capacidade financeira, oriunda do aumento da inadimplência e da redução do consumo de energia, dada a desaceleração das atividades econômicas.
Embora haja severas críticas à MP 950, seja por não alcançar automaticamente todos os usuários de baixa renda, seja por sobrecarregar os demais consumidores após o término da pandemia, compreende-se que constitua importante medida no enfrentamento dos efeitos econômicos dela decorrentes. Afinal, a MP 950 conserva em seu cerne o propósito de proteger os que mais necessitam: os consumidores em situação de extrema vulnerabilidade social.