OAB - Santos

OAB - Santos - Principal

DA CONTROVÉRSIA ACERCA DO ART. 5º DA MEDIDA PROVISÓRA Nº 948/2020

21/05/2020 Voltar

Articulista: Rui Licinio de Castro Paixão Filho

A pandemia de gripe chinesa, ou COVID-19, causada pelo coronavírus, colocou a humanidade em uma crise sem precedentes na história. Devido a seu alto grau de contágio e por atacar fortemente os pulmões, ele está colocando em risco a vida sobretudo de idosos e portadores de doenças crônicas. Esta situação obrigou os governos de todo o mundo a decretar quarentena para evitar não só que mais pessoas sejam contaminadas como também que haja o colapso no sistema de saúde.
 
Diante da velocidade com que o vírus se espalhou pelo mundo, seria inevitável que ele cedo ou tarde chegasse ao Brasil. Aqui a doença não só causou o agravamento de nossa crise econômica, impedindo as pessoas de trabalharem e as empresas de produzirem, como também prejudicou o pleno exercício das relações jurídicas, mais notadamente em relação ao cumprimento de contratos, em decorrência da força maior.
 
A força maior é um fato jurídico extraordinário e inevitável oriundo de fatores externos cujos efeitos não se tem como evitar ou impedir. A sua ocorrência inviabiliza o pleno cumprimento dos contratos e tem como efeito a isenção da responsabilidade da parte que ficou impossibilitada de cumprir sua parte no que foi acordado, ficando isenta de culpa.
 
É possível perceber, portanto, que a gripe chinesa (COVID-19) preenche todos os requisitos que caracterizam a força maior. Sobre isso, o Código Civil, em seu art. 393, dispõe expressamente que "o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado."
 
Esta pandemia também atinge duramente do Direito do Consumidor, mais notadamente às questões relativas à prestação de serviços. Quanto a isso, o inciso I do art. 6ª do Código de Defesa do Consumidor consagra como direito a proteção à saúde contra os riscos provocados pelo fornecimento de produtos e serviços. Já o inciso V do mesmo artigo proíbe "a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas".
 
Isso faz com que cláusulas que até então eram normais possam vir a se tornar abusivas devido aos efeitos da pandemia. Isso obriga os contratos a serem analisados casos a caso, para que se possa averiguar se o que levou ao seu não cumprimento foi consequência da gripe chinesa (COVID-19).
 
Diante disso, o Governo Federal editou várias medidas provisórias visando regular as relações jurídicas durante a pandemia e, com isso, trazer segurança às relações contratuais.
 
Uma delas é a MP nº 948/2020, que regula como se dará o cancelamento dos serviços envolvendo os setores de turismo e cultura durante essa crise, estabelecendo como se dará as relações de consumo durante esse período. É do que trata o art. 1º.
 
O art. 2º Dispõe que a agência de turismo ou a organizadora de eventos não serão obrigadas a restituir a quantia paga a seus clientes caso garantam a remarcação dos serviços, das reservas ou dos eventos cancelados, bem como a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas empresas ou outro acordo acertado entre as partes.
 
O artigo ainda diz, em seus parágrafos 1º e 2º, que o eventual cancelamento ocorrerá nenhum custo ao consumidor caso a solicitação seja feita num prazo de 90 dia a contar da entrada em vigor desta Medida Provisória, bem como que a devolução só será efetuada em até 12 meses contados do encerramento do estado de calamidade pública.
 
O parágrafo 3º determina que, em caso de remarcação, ela deve levar em conta a data em que se marcará a nova viagem ou evento, o valor contratado e o prazo de 12 meses para devolução do valor após a pandemia.
 
O parágrafo 4º dispões que, se as partes não chegarem a um acordo quanto a remarcação ou a oferta de créditos, o valor pago pelo consumidor deve ser devolvido atualizado pelo IPCA-Eem até 12 meses após o fim da pandemia.
 
O art. 3º determina que essa Medida Provisória se aplica a todas a empresas descritas no art. 21 da Lei nº 11.771/2008 (agências de turismo, organizadoras de eventos, parques temáticos e similares), bem como cinemas, teatros e plataformas digitais de vendas de ingressos pela internet.
 
Artistas contratados para atuar em eventos cancelados pela pandemia, segundo o art. 4º, não precisam devolver seus cachês caso o evento em questão seja remarcado num prazo de até 12 meses após o fim do estado de calamidade pública, e caso o evento não ocorra, o valor terá que ser devolvido atualizado pelo IPCA-E em até 12 meses após o fim da pandemia.
 
A medida provisória, de acordo com o art. 6º deve entrar em vigor no dia de sua publicação, tendo isso ocorrido em 08 de abril deste ano.
 
Até então a Medida Provisória vinha cumprindo o seu papel, uma vez que, além de resguardar o direito das partes, se preocupou em manter as relações contratuais ameaçadas por uma situação atípica que nenhuma delas deu causa. Entretanto, seu art. 5º é alvo de várias controvérsias cujos efeitos ao fim da pandemia serão devastadores aos consumidores.
 
Ele diz, em suma, que as relações de consumo abarcadas pela MP nº 948/2020 caracterizam hipóteses de caso fortuito e força maior, não cabendo nesses casos danos morais, multas ou outras penalidades.
 
Esse artigo, além de ter sido pessimamente redigido, dá margem a interpretações de cunho subjetivo, tornando sua aplicação controversa.
 
Primeiro temos que definir o que vem a ser relação de consumo. Segundo Rizzatto Nunes, ela ocorre "sempre que se puder identificar num dos polos da relação o consumidor, no outro, o fornecedor, ambos transacionando produtos e serviços".[1]
 
Dessa forma, havendo uma parte que quer adquirir um produto ou serviço e outra disposta a oferecê-lo mediante uma compensação econômica, a relação de consumo está concretizada. Conclui-se, portanto, que a ela se origina na manifestação de vontade de duas partes interessadas em contratar, não havendo que se falar, portanto, em evento imprevisível ou inevitável, bem com relacioná-la a situações de força maior.
 
Incluir uma relação de consumo em situações de caso fortuito e força maior, portanto, é comparável àquele clássico brinquedo de criança onde se coloca a forma geométrica no seu espaço correto e no caso em tela, se tenta encaixar um triângulo no espaço destinado a um quadrado. Esse absurdo, só de estar disposto em um ato com força de lei, é para deixar a comunidade jurídica extremamente preocupada.
 
E isso é só o começo da série de atrocidades que esse artigo mal redigido tem impingido em nosso ordenamento jurídico. A indenização por dano moral está devidamente amparada no Código de Defesa do Consumidor no inciso VI de seu art. 6º, bem como nos incisos V e X do art. 5º da Constituição Federal, sendo, portanto, um direito fundamental, e, consequentemente, uma cláusula pétrea, conforme o inciso IV do art. 60 deste diploma legal.
 
Com base nos aspectos legais e doutrinários aqui abordados, é importante uma análise prática desta aberração em forma de dispositivo legal. Façamos o seguinte estudo de caso: um consumidor teve sua viagem cancelada devido a pandemia e a agência onde ele comprou o referido pacote remarcou sua viagem para uma data a qual ele não poderá viajar por ser fora de seu período de férias. Diante do impasse criado, o consumidor solicita a devolução do seu dinheiro e, ou a agência se recusa a fazê-lo, ou faz a devolução 12 meses após o fim da pandemia, mas sem a devida correção ou não efetua a devolução mesmo após o fim deste prazo de 12 meses.
 
Além da atitude da agência, no caso em tela, ser de extrema má-fé e configurar prática abusiva, também caracteriza má prestação de serviço e desvio produtivo do consumidor, que justificaria que ela indenizasse seu cliente por danos morais. O art. 5º da medida provisória objeto de análise, no entanto, tira do consumidor esse direito garantido constitucionalmente, o que dará margem a uma série de abusos que serão perpetrados pelos fornecedores por ela amparados, principalmente após o fim da pandemia.
 
Uma medida provisória para regular o setor de turismo e de eventos enquanto durar os efeitos da pandemia era necessária, diante da importância econômica deles e da grande quantidade de empregos que eles geram. A MP nº 948/2020, ainda que não aborde casos mais específicos, poderia cumprir razoavelmente bem o seu papel se não fosse esse art. 5º extremamente mal redigido e tendencioso. Dessa forma, levando em conta que a referida medida provisória está sendo objeto de análise no Congresso nacional, para que ela possa cumprir plenamente seu objetivo o art. 5º teria que ser vetado, dada a série de atrocidades que ele perpetra e, assim, evitar maiores prejuízos aos consumidores.



[1] NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 120.