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PERSPECTIVAS ÉTICAS ACERCA DOS CONFLITOS ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS E PROTEÇÃO DE DADOS EM TEMPOS DE COVID-19

17/06/2020 Voltar

Articulista: Diogo Ramos

Perspectivas éticas acerca dos conflitos entre direitos fundamentais e proteção de dados em tempos de COVID-19
 
Não há dúvidas de que a humanidade enfrenta, atualmente, uma de suas maiores crises em toda a história. Os impactos causados pelo coronavírus, ou COVID-19, são devastadores.

Seja na saúde, coma morte de milhares de pessoas ao redor do mundo, bem como superlotação em leitos de hospitais ao redor do mundo. Seja na economia, com a queda de preços em todas as principais bolsas de valores, fechamento de estabelecimentos comerciais causando altos prejuízos à micro, pequenos e médios empresários, bem como pânico de investidores, o que acaba por minar as atividades e desenvolvimento do setor privado.

Todavia, um importante ponto que deve ser destacado são os embates éticos que surgiram a partir desse cenário caótico, inclusive envolvendo o campo da privacidade e proteção de dados pessoais. A ética sempre foi um campo não muito discutido no cenário macro e internacional, que se preocupa mais com discussões sociais, econômicas e políticas.

Porém, com o avanço da tecnologia, tais discussões ganharam mais força internacionalmente, tendo em vista os conflitos que surgem de um rápido e perigoso desenvolvimento tecnológico, o qual pode ser muito bom para a sociedade como um todo, mas que também apresenta grandes riscos se não for muito bem supervisionado e controlado.

Dessa forma, diversos embates éticos em âmbito global emergiram da crise ocasionada pelo coronavírus. No presente artigo, será explorado o conflito entre o direito fundamental à saúde e a privacidade e proteção de dados dos cidadãos.

Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que grande parte das discussões que se originam da evolução tecnológica envolve o clássico conflito entre utilitarismo e deontologia no campo da ética.

Basicamente, na visão utilitarista clássica, ou consequencialista, como é classificado por diversos autores, um ato praticado seria moralmente correto caso maximizasse o bem, de forma que o valor total do bem gerado para um grupo de pessoas, ou para toda a sociedade, fosse maior do que o mau gerado. De certa forma, haveria um saldo positivo entre os benefícios proporcionados pelo ato em comparação com os seus malefícios.

Já, a visão deontológica considera cada indivíduo como um fim em si mesmo, possuindo foco na ação do agente, de forma que escolhas erradas não podem ser justificadas por seus efeitos, ainda que suas consequências sejam nobres. Dessa maneira, o que torna uma escolha certa é a sua conformidade com o dever moral, independentemente de suas consequências.

Sendo assim, observa-se que a deontologia é diametralmente oposta ao utilitarismo consequencialista que, ao mensurar quais vidas valem mais, e qual é o bem maior, menospreza direitos individuais e fundamentais.
          
Ultrapassada essa breve explanação, deve ser destacada que, no intuito de monitorar e controlar o avanço da taxa de contágio pelo COVID-19, diversos governos ao redor do mundo têm utilizado tecnologias, cada vez mais intrusivas, para vigilância de seus cidadãos.

O filósofo Yuval Harari, em artigo publicado no Financial Times, destacou uma grande problemática que pode surgir desse cenário. Na atual situação, as pessoas estão de acordo com um alto monitoramento de suas atividades, caso sirva para resguardar a sua saúde e deter o avanço de uma pandemia. Todavia, o que ocorrerá quando o coronavírus for superado, porém estes mecanismos de vigilância continuarem a ser utilizados?[1]

[1]HARARI, Yuval Noah. The world after coronavirus. Publicado no portal Financial Times, em 20 mar 2020. Disponível em :https://www.ft.com/content/19d90308-6858-11ea-a3c9-1fe6fedcca75?referrer=amp-unreadable. Acesso em: 07 abr. 2020.

A China, por exemplo, vem utilizando geolocalização por celulares e identificação facial com medição de temperatura a fim de controlar o avanço da pandemia no país.
Drones estão sendo utilizados por países como França, Espanha, Itália e China para dispersar aglomerações, indicar o uso de máscaras, bem como alertar e advertir quem está violando regras de confinamento. Em países como Rússia, Hong Kong e, novamente, China, códigos QR e tecnologia bluetooth estão sendo usados para monitorar residentes de áreas em quarentena.

Por certo, quase todos os países com alto número de casos de infectados pelo COVID-19 estão utilizando geolocalização e compartilhamento de dados de celulares para vigilância de aglomerações.[1]Assim, praticamente todos os cidadãos estão sujeitos, no momento atual, a um monitoramento constante por meio do dispositivo que mais utilizam no dia-a-dia. No Brasil não é diferente.

No mês de abril, o Ministério da Ciência e Tecnologia fechou acordos com 05 grandes operadoras, Oi, Claro, Algar, Vivo e Tim, a fim de obter informações acerca de aglomerações a partir de dados anonimizados de celulares, bem como monitorar deslocamentos.

As operadoras afirmam que os dados fornecidos visariam exclusivamente o combate ao coronavírus, e estarão em uma nuvem pública, denominada data lake, sendo organizados de forma agregada e anônima, seguindo regras da Lei Geral de Proteção de Dados e do Marco Civil da Internet.[2]

[1]GIELOW, Igor. Tecnologia usada no combate à pandemia de coronavírus ameaça privacidade. Publicado no portal Folha de São Paulo, em 05 abr. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/04/tecnologia-usada-no-combate-a-pandemia-de-coronavirus-ameaca-privacidade.shtml. Acesso em: 07 abr. 2020.
[2]SOPRANA, Paula. Governo vai usar dados de operadoras para monitorar aglomeração na pandemia. Publicado no portal Folha de São Paulo, em 02 abr. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/governo-vai-usar-dados-de-operadoras-para-monitorar-deslocamentos-na-pandemia.shtml. Acesso em: 07 abr. 2020.

[3]PRAZERES, Leandro. Governo federal adia uso de dados de operadoras para monitorar aglomerações. Publicado no portal O Globo, em 13 abr. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/governo-federal-adia-uso-de-dados-de-operadoras-para-monitorar-aglomeracoes-diz-ministro-24367499. Acesso em 11 mai. 2020.

Apesar de o governo federal ter desistido da ideia (ao menos por enquanto) [3], imaginemos o que aconteceria caso tais medidas fossem implantadas. Quem realmente garante que os dados coletados seriam utilizados somente para o intuito de combater o COVID-19? Ainda existe bastante obscuridade e dificuldade em se identificar para quais finalidades os nossos dados estão sendo usados. Como os cidadãos poderiam monitorar se os seus dados estão sendo utilizados somente para esse objetivo?

Além disso, quais dados seriam coletados? Realmente apenas dados de deslocamento, ou dados acerca da identidade, histórico de atividades online, quadro de saúde, aplicativos mais utilizados, dentre outros, também não poderão ser coletados por meio dessa prática?

É fato que, no Brasil, a principal Lei que trata acerca da proteção de dados é a Lei nº 13.709/2018 - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Tal lei teve sua entrada em vigor recentemente prorrogada, para maio de 2021, por meio da MP nº 959/2020[1], o que, certamente, dará ainda mais abertura ao governo brasileiro para a exploração dos dados pessoais de seus cidadãos.

A LGPD, que possui inspiração no General Data Protection Regulation (GDPR) europeu, contêm diversos fundamentos e princípios que serão gravemente violados em razão do abuso na utilização dos sistemas de vigilância já mencionados, especialmente o monitoramento e uso de dados do próprio celular dos cidadãos, caso tais práticas venham a ser adotadas em âmbito nacional.

O fundamento da autodeterminação informativa, previsto em seu art. 2º, II, bem como diversos princípios da LGPD, especialmente os da finalidade, adequação, necessidade, livre acesso, transparência e responsabilização e prestação de contas, conforme art. 6º da lei, não vêm sendo devidamente observados pelas autoridades públicas.

Com a utilização de dados dos próprios celulares dos cidadãos, sem a sua expressa autorização, para geolocalização e monitoramento de aglomerações, já se nota que um dos principais fundamentos da LGPD, a autodeterminação informativa, que preconiza que o próprio titular deve ter o controle pessoal sobre o trânsito e uso de dados pessoais relativos a si próprios, será completamente violado.

Além disso, desse acesso indevido a celulares decorre também a ofensa aos princípios já citados. A finalidade do tratamento - este deve ser feito para propósitos legítimos e específicos - a adequação do tratamento - deve ser compatível com as finalidades informadas ao titular - e, a necessidade do tratamento - limitação do uso de dados ao mínimo necessário para o cumprimento suas finalidades.


[1]POMPEU, Ana; TREVOR, Valentina; ALVES, Raquel. Governo adia entrada em vigor da LGPD para 3 de maio de 20201. Publicado no JOTA, em 29 abr. 2020. Disponível em https://www.jota.info/jotinhas/governo-adia-entrada-em-vigor-da-lgpd-para-3-de-maio-de-2021-29042020. Acesso em 11 mai. 2020.

Com efeito, imaginemos a quantos e quais dados o governo brasileiro terá acesso mediante essa invasão arbitrária aos celulares dos cidadãos. Certamente, medidas menos intrusivas poderiam ser utilizadas para o combate ao coronavírus.

Fotos e mensagens íntimas, dados cadastrais, dados financeiros, locais comuns de visita, horário e tempo de sono, informações do trabalho, apenas para citar algumas das inúmeras espécies de dados e informações que são acessíveis por meio do celular de um indivíduo.

Ademais, denota-se a violação também aos princípios do livre acesso, transparência e responsabilização e prestação de contas, uma vez que podemos acreditar que o governo não concederá fácil visibilidade, nem as devidas informações ao cidadão que deseje saber quais dos seus dados foram acessados e utilizados, para quais finalidades e de que forma.

Retomando os apontamentos de Harari no artigo já mencionado, este ressalta a questão de que nenhum de nós sabe em que caminho as tecnologias de vigilância estão avançando e como elas evoluirão nos próximos anos. Cita, como exemplo, se um governo criasse uma pulseira biométrica capaz de medir a temperatura corporal e os batimentos cardíacos de um indivíduo 24 horas por dia. Tal tecnologia, certamente, seria uma grande aliada no combate a uma pandemia.

Todavia, Yuval também afirma que se essa tecnologia for capaz de monitorar a temperatura corporal, a pressão sanguínea e os batimentos cardíacos de uma pessoa, depois de algum tempo, ela também seria capaz de aprender e monitorar as suas emoções. Ela saberia o que faz determinada pessoa feliz, nervosa, ansiosa, apenas por mudanças nos batimentos cardíacos e pressão do sangue. Harari destaca que é crucial lembrarmos que felicidade, raiva, amor e ansiedade são fenômenos biológicos assim como febre, tosse ou gripe.

De fato, governos afirmam que as medidas adotadas são apenas temporárias. Porém, quem garante que assim que a pandemia tiver um fim, estes não continuarão utilizando as tecnologias de vigilância, porém sob outro pretexto, afirmando que estas servem para o combate à violência urbana, que devem se precaver contra outra onda epidêmica, ou que as utilizarão para a melhoria dos serviços de transporte público.

Assim, observamos que esse conflito originado do uso massivo de tecnologias para o monitoramento e controle de pessoas, mesmo que para a proteção de sua saúde, também levanta complexos embates éticos acerca da prevalência do direito fundamental à saúde de todos os cidadãos em detrimento de sua privacidade e da proteção de seus dados pessoais.

O embate atual demonstra a real importância da adoção de uma visão ética em nível internacional. Claro que as discussões sociais, econômicos e políticas são fundamentais para o desenvolvimento da humanidade, porém, o campo da ética também vem se demonstrando essencial para a resolução de questões cada vez mais complexas, e que vem afetando pessoas no mundo inteiro.

Apesar de discutirmos no presente artigo apenas um conflito que se intensifica com o avanço e evolução da tecnologia, e especialmente em períodos de crises, esses embates serão cada vez mais comuns nos próximos anos.

Dessa forma, faz-se importante que os próprios cidadãos se atentem se as soluções propostas e adotadas no curto prazo por governos e grandes empresas estão se baseando em uma perspectiva ética deontológica, e que considere a proteção e prevalência de todos os seus direitos fundamentais no longo prazo, ao invés minarem e violarem determinados direitos em busca de uma solução consequencialista no curto prazo, mas que pode trazer graves prejuízos no futuro.