[1]GIELOW, Igor. Tecnologia usada no combate à pandemia de coronavírus ameaça privacidade. Publicado no portal Folha de São Paulo, em 05 abr. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/04/tecnologia-usada-no-combate-a-pandemia-de-coronavirus-ameaca-privacidade.shtml. Acesso em: 07 abr. 2020.
[2]SOPRANA, Paula. Governo vai usar dados de operadoras para monitorar aglomeração na pandemia. Publicado no portal Folha de São Paulo, em 02 abr. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/governo-vai-usar-dados-de-operadoras-para-monitorar-deslocamentos-na-pandemia.shtml. Acesso em: 07 abr. 2020.
[3]PRAZERES, Leandro. Governo federal adia uso de dados de operadoras para monitorar aglomerações. Publicado no portal O Globo, em 13 abr. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/governo-federal-adia-uso-de-dados-de-operadoras-para-monitorar-aglomeracoes-diz-ministro-24367499. Acesso em 11 mai. 2020.
Apesar de o governo federal ter desistido da ideia (ao menos por enquanto) [3], imaginemos o que aconteceria caso tais medidas fossem implantadas. Quem realmente garante que os dados coletados seriam utilizados somente para o intuito de combater o COVID-19? Ainda existe bastante obscuridade e dificuldade em se identificar para quais finalidades os nossos dados estão sendo usados. Como os cidadãos poderiam monitorar se os seus dados estão sendo utilizados somente para esse objetivo?
Além disso, quais dados seriam coletados? Realmente apenas dados de deslocamento, ou dados acerca da identidade, histórico de atividades online, quadro de saúde, aplicativos mais utilizados, dentre outros, também não poderão ser coletados por meio dessa prática?
É fato que, no Brasil, a principal Lei que trata acerca da proteção de dados é a Lei nº 13.709/2018 - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Tal lei teve sua entrada em vigor recentemente prorrogada, para maio de 2021, por meio da MP nº 959/2020[1], o que, certamente, dará ainda mais abertura ao governo brasileiro para a exploração dos dados pessoais de seus cidadãos.
A LGPD, que possui inspiração no General Data Protection Regulation (GDPR) europeu, contêm diversos fundamentos e princípios que serão gravemente violados em razão do abuso na utilização dos sistemas de vigilância já mencionados, especialmente o monitoramento e uso de dados do próprio celular dos cidadãos, caso tais práticas venham a ser adotadas em âmbito nacional.
O fundamento da autodeterminação informativa, previsto em seu art. 2º, II, bem como diversos princípios da LGPD, especialmente os da finalidade, adequação, necessidade, livre acesso, transparência e responsabilização e prestação de contas, conforme art. 6º da lei, não vêm sendo devidamente observados pelas autoridades públicas.
Com a utilização de dados dos próprios celulares dos cidadãos, sem a sua expressa autorização, para geolocalização e monitoramento de aglomerações, já se nota que um dos principais fundamentos da LGPD, a autodeterminação informativa, que preconiza que o próprio titular deve ter o controle pessoal sobre o trânsito e uso de dados pessoais relativos a si próprios, será completamente violado.
Além disso, desse acesso indevido a celulares decorre também a ofensa aos princípios já citados. A finalidade do tratamento - este deve ser feito para propósitos legítimos e específicos - a adequação do tratamento - deve ser compatível com as finalidades informadas ao titular - e, a necessidade do tratamento - limitação do uso de dados ao mínimo necessário para o cumprimento suas finalidades.
[1]POMPEU, Ana; TREVOR, Valentina; ALVES, Raquel. Governo adia entrada em vigor da LGPD para 3 de maio de 20201. Publicado no JOTA, em 29 abr. 2020. Disponível em https://www.jota.info/jotinhas/governo-adia-entrada-em-vigor-da-lgpd-para-3-de-maio-de-2021-29042020. Acesso em 11 mai. 2020.
Com efeito, imaginemos a quantos e quais dados o governo brasileiro terá acesso mediante essa invasão arbitrária aos celulares dos cidadãos. Certamente, medidas menos intrusivas poderiam ser utilizadas para o combate ao coronavírus.
Fotos e mensagens íntimas, dados cadastrais, dados financeiros, locais comuns de visita, horário e tempo de sono, informações do trabalho, apenas para citar algumas das inúmeras espécies de dados e informações que são acessíveis por meio do celular de um indivíduo.
Ademais, denota-se a violação também aos princípios do livre acesso, transparência e responsabilização e prestação de contas, uma vez que podemos acreditar que o governo não concederá fácil visibilidade, nem as devidas informações ao cidadão que deseje saber quais dos seus dados foram acessados e utilizados, para quais finalidades e de que forma.
Retomando os apontamentos de Harari no artigo já mencionado, este ressalta a questão de que nenhum de nós sabe em que caminho as tecnologias de vigilância estão avançando e como elas evoluirão nos próximos anos. Cita, como exemplo, se um governo criasse uma pulseira biométrica capaz de medir a temperatura corporal e os batimentos cardíacos de um indivíduo 24 horas por dia. Tal tecnologia, certamente, seria uma grande aliada no combate a uma pandemia.
Todavia, Yuval também afirma que se essa tecnologia for capaz de monitorar a temperatura corporal, a pressão sanguínea e os batimentos cardíacos de uma pessoa, depois de algum tempo, ela também seria capaz de aprender e monitorar as suas emoções. Ela saberia o que faz determinada pessoa feliz, nervosa, ansiosa, apenas por mudanças nos batimentos cardíacos e pressão do sangue. Harari destaca que é crucial lembrarmos que felicidade, raiva, amor e ansiedade são fenômenos biológicos assim como febre, tosse ou gripe.
De fato, governos afirmam que as medidas adotadas são apenas temporárias. Porém, quem garante que assim que a pandemia tiver um fim, estes não continuarão utilizando as tecnologias de vigilância, porém sob outro pretexto, afirmando que estas servem para o combate à violência urbana, que devem se precaver contra outra onda epidêmica, ou que as utilizarão para a melhoria dos serviços de transporte público.
Assim, observamos que esse conflito originado do uso massivo de tecnologias para o monitoramento e controle de pessoas, mesmo que para a proteção de sua saúde, também levanta complexos embates éticos acerca da prevalência do direito fundamental à saúde de todos os cidadãos em detrimento de sua privacidade e da proteção de seus dados pessoais.
O embate atual demonstra a real importância da adoção de uma visão ética em nível internacional. Claro que as discussões sociais, econômicos e políticas são fundamentais para o desenvolvimento da humanidade, porém, o campo da ética também vem se demonstrando essencial para a resolução de questões cada vez mais complexas, e que vem afetando pessoas no mundo inteiro.
Apesar de discutirmos no presente artigo apenas um conflito que se intensifica com o avanço e evolução da tecnologia, e especialmente em períodos de crises, esses embates serão cada vez mais comuns nos próximos anos.
Dessa forma, faz-se importante que os próprios cidadãos se atentem se as soluções propostas e adotadas no curto prazo por governos e grandes empresas estão se baseando em uma perspectiva ética deontológica, e que considere a proteção e prevalência de todos os seus direitos fundamentais no longo prazo, ao invés minarem e violarem determinados direitos em busca de uma solução consequencialista no curto prazo, mas que pode trazer graves prejuízos no futuro.