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A INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGE E COMPANHEIRO (ARTIGO 1.790, CC)
O Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, que estabelece diferenças entre a participação do companheiro e do cônjuge na sucessão dos bens, em julgamento realizado em 10/05/2017.
Dispõe o artigo 1.790 do Código Civil:
"Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança."
A decisão foi proferida no julgamento dos Recursos Extraordinários 646721 e 878694, ambos com repercussão geral reconhecida, que discutem a equiparação entre cônjuge e companheiro para fins de sucessão, inclusive em uniões homoafetivas.
A controvérsia constitucional da questão foi sintetizada na seguinte proposição: É legítima a distinção, para fins sucessórios, entre a família proveniente do casamento e a proveniente de união estável ?
O Supremo Tribunal Federal entendeu que não existe elemento de discriminação que justifique o tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro estabelecido pelo Código Civil, estendendo esses efeitos independentemente da orientação sexual.
Está prevista no artigo 1.723 do Código Civil, a União Estável como entendida familiar, sendo a união entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família, sem a formalidade do casamento, nem impedimento para a celebração deste (arts. 1.727 c/c 1.723, § 1º, CC) , sendo regida pelo princípio da liberdade (art. 1.725, CC).
Se os companheiros não convencionaram por escrito regime próprio de bens para sua união, vige para o casal o regime da comunhão parcial de bens (art. 1.725 c/c 1.658 a 1.666, CC).
A União Homoafetiva difere da União Estável, por ser a união entre duas pessoas do mesmo sexo. O Supremo Tribunal Federal reconheceu à União Homoafetiva em 05/05/2011 o status de entidade familiar, estendendo a estas relações a mesma proteção destinada à União Estável prevista no artigo 226, § 3º, da Constituição Federal, e no artigo 1723 do Código Civil.
Como assentou o Ministro Marco Aurélio no julgamento da ADPF 132 "Revela-se, então, a modificação paradigmática no direito de família. Este passa a ser o direito 'das famílias', isto é, das famílias plurais, e não somente da família matrimonial, resultante do casamento. Em detrimento do patrimônio, elegeram-se o amor, o carinho e a afetividade entre os membros como elementos centrais de caracterização da entidade familiar. Alterou-se a visão tradicional sobre a família, que deixa de servir a fins meramente patrimoniais e passa a existir para que os respectivos membros possam ter uma vida plena comum. Abandonou-se o conceito de família enquanto 'instituição-fim em si mesmo', para identificar nela a qualidade de instrumento a serviço da dignidade de cada partícipe.".
O RE 878694 trata de união de casal heteroafetivo e o RE 646721 aborda sucessão de uma relação homoafetiva.
No julgamento prevaleceu o voto do Ministro Luís Roberto Barroso, relator do RE 878694, que também proferiu o primeiro voto divergente no RE 646721, relatado pelo ministro Marco Aurélio. Barroso sustentou que o STF já equiparou as uniões homoafetivas às uniões "convencionais", o que implica utilizar os argumentos semelhantes em ambos.
Argumentou que, após a Constituição Federal de 1988 foram editadas duas normas, a Lei 8.971/1994 e a Lei 9.278/1996, que equipararam os regimes jurídicos sucessórios do casamento e da união estável. O Código Civil entrou em vigor em 2003, alterando o quadro. Isso porque, segundo o Ministro, o código foi fruto de um debate realizado nos anos de 1970 e 1980, anterior a várias questões que se colocaram na sociedade posteriormente.
"Quando o Código Civil desequiparou o casamento e as uniões estáveis, promoveu um retrocesso e promoveu uma hierarquização entre as famílias que a Constituição não admite", completou o Ministro.
Trecho importante do V. Acórdão do RE 878694 menciona que "Sensível às mudanças dos tempos, a Constituição de 1988 aproximou o conceito social de família de seu conceito jurídico. Três entidades familiares passaram a contar com expresso reconhecimento no texto constitucional: (i) a família constituída pelo casamento (art. 226, § 1º); (ii) a união estável entre o homem e a mulher (art. 226, § 3º); e (iii) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada família monoparental (art. 226, § 4º). A Constituição rompeu, assim, com o tratamento jurídico tradicional da família, que instituía o casamento como condição para a formação de uma família "legítima".
E ainda: "a norma aqui analisada estabelece, de forma inequívoca, que a família tem especial proteção do Estado, sem fazer qualquer menção a um modelo familiar que seria mais ou menos merecedor desta proteção. Veja-se: o texto do art. 226, seja em seu caput, seja em seu § 3º, não traça qualquer diferenciação entre o casamento e a união estável para fins de proteção estatal. Se o texto constitucional não hierarquizou as famílias para tais objetivos, o legislador infraconstitucional não deve poder fazê-lo.".
O artigo 1.790 do Código Civil pode ser considerado inconstitucional porque viola princípios como a igualdade, dignidade da pessoa humana, proporcionalidade a vedação ao retrocesso.
No caso do RE 646721, o relator, Ministro Marco Aurélio, ficou vencido ao negar provimento ao recurso. Segundo seu entendimento, a Constituição Federal reconhece a união estável e o casamento como situações de união familiar, mas não abre espaço para a equiparação entre ambos, sob pena de violar a vontade dos envolvidos, e assim, o direito à liberdade de optar pelo regime de união. Seu voto foi seguido pelo Ministro Ricardo Lewandowski.
Entretanto, salvo melhor juízo, o que temos na união estável muitas vezes é a informalidade da relação existente entre duas pessoas, até mesmo pela falta de conhecimento dos envolvidos em relação a lei que distingue os direitos existentes entre cônjuge e companheiro para fins de sucessão, e não a vontade propriamente dita de que o artigo 1.790 do Código Civil se aplique ao seu caso especificamente. Aliás, se os companheiros quiserem dispor diversamente do regime de bens previsto em lei, podem formalizar tal vontade por "contrato escrito", nos termos do que dispõe o artigo 1.725 do Código Civil.
O que não se pode admitir é a contradição entre as normas estampadas nos artigos 1.725 e 1.790, ambos do Código Civil, onde o primeiro estabelece que na ausência de contrato escrito entre companheiros aplica-se o regime da comunhão parcial de bens e o segundo determina partilha diferenciada em caso de óbito de um dos companheiros. Ou seja, na hipótese de declaração de constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil teríamos a existência de regime da comunhão parcial de bens, ou outro expressamente previsto em contrato, para o caso de dissolução de união estável e regime próprio, "inominado", em caso de sucessão, em total prejuízo aos companheiros.
Para fins de repercussão geral, foi aprovada a seguinte tese, válida para ambos os processos: "No sistema constitucional vigente é inconstitucional a diferenciação de regime sucessório entre cônjuges e companheiros devendo ser aplicado em ambos os casos o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil.".
Dispõe o artigo 1.829 do Código Civil o seguinte:
"Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.6640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge;
III - ao cônjuge sobrevivente;
IV - aos colaterais."
Importante frisar que, o entendimento de inconstitucionalidade foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal apenas para os inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública, na data do julgamento do Recurso Extraordinário, com a finalidade de preservar a segurança jurídica, e, obviamente, aos casos ocorridos após tal julgamento.
Elizangela Aparecida Pedro
Advogada, Secretária e Membro Efetivo da Comissão de Direito Notarial e Registros Públicos da Ordem dos Advogados de Santos e Pós-graduanda em Direito de Família e Sucessões com Ênfase em Mediação